Dorian Gray, o eterno homem-criança (Puer Aeternus)
uma análise junguiana do processo de individuação do eterno homem-criança na obra literária "O retrato de Dorian Gray"
“Fizesse o que fizesse, nada poderia purificá-lo, enquanto guardasse segredo do seu pecado. Pecado? encolheu os ombros.”
Oscar Wilde, 1972, p:268
“O retrato de Dorian Gray” é, sem sombra de dúvidas, uma das obras de ficção mais ricas para análise que eu conheço. Além de extremamente simbólica, pode-se tirar dela os mais diferentes temas e trabalhar sobre eles partindo de quase todos — senão todos — os pontos de vista interpretativos. Pode-se propor, por exemplo, análise antropológica do contexto social e histórico do século XIX; o problema da arte ao considerar o pequeno manifesto do autor no prefácio; a semelhança da jornada de Dorian com o mito de Narciso, a questão do duplo, ou até mesmo partir da psicanálise e compreender os personagens principais como representantes metafóricos das instâncias ID, Ego e Superego, elaboradas por Freud.
Porém, ainda que me baseando na ciência da psicologia para isso, hoje proponho uma análise diferente. A partir da psicologia analítica, pretendo elaborar o processo de individuação e desenvolvimento da identidade do protagonista Dorian Gray, bem como apontar a ambígua relação de “redenção” e, paralelo a isso, fuga constante da morte, caracterizada pela vontade e incapacidade de mudança da personagem. Para tanto, fundamento minhas ideias especialmente no livro “Puer Aeternus” de Marie-Louise Von Franz(1992) e “A natureza da psique” de C.G. Jung(2014).
Puer Aeternus, ou o homem-criança
É necessário, antes de tudo, compreender que o arquétipo do Puer, elaborado mais detalhadamente por Von-Franz(1992), aponta especialmente para a neurose. Sendo assim, os apontamentos referidos pela autora quanto à personalidade e comportamentos do Puer não passam de aspectos arquetípicos que serão vividos individualmente por cada um.
Representado na mitologia como o deus Eros, filho de Afrodite, ou Dionísio, o Puer Aeternus é um homem adulto que, dominado por um complexo materno devorador, mantém a fantasia essencialmente imatura da infância. Como está preso aos padrões infantis, o homem-criança apresenta algumas características predominantes em sua personalidade que não poderiam fazer parte de uma vida verdadeiramente adulta e funcional, como a atitude de “vida provisória” e sentimento de nunca “estar pronto” para algo que, inevitavelmente, vai acontecer — ou precisa acontecer, como no caso da individuação.
Apesar de evitar responsabilidades — afinal, comprometer-se é unir-se a Gaia, e não apenas girar em torno dela — e ter uma espécie de criatividade destrutiva que o afasta do mundo “real”, o Puer tem um entusiasmo juvenil e sabe manter os outros ao seu redor atraídos por sua personalidade e charme igualmente encantadores. Esse jovem simpático e espirituoso é, justamente, Dorian Gray, rapaz que claramente sabe parecer profundo e enigmático — e, de certa maneira, o é — diante do coletivo, mas é secretamente não adaptado à vida social, tornando-se, dessa forma, ligeiramente volátil quanto às suas emoções e decisões.
Tudo o que ele mais precisa é de proteção.
É interessante destacar que o Puer constantemente se coloca em perigo, praticando esportes perigosos que podem levar à morte. Von-Franz (1992) destaca, creio que pelo contexto europeu da época, a atração desses homens adultos por aviação, numa tentativa simbólica de “separação da mãe, isto é, da terra” (Von-Franz, 1992, p.7).
Eu tenho um posicionamento sobre este fato, porém não cabe na análise de hoje e, por isso, pouparei vocês de meus devaneios um pouco malucos. Prossigamos:
A sombra do Puer Aeternus é um espírito frio e brutal, compensação de uma atitude excessivamente idealista. A partir de minhas reflexões durante a leitura, considero Dorian Gray mais frio do que bruto nesse contexto, uma vez que seu senso megalomaníaco e narcísico o impede de sair do centro das situações e constantemente o faz se colocar como vítima dos atos e decisões de terceiros. Para ele, foi Basílio quem pintou seu retrato e Lorde Henry quem lhe apresentou o livro que degradou seu senso ético — é sempre o outro o culpado pela sua estagnação e degeneração, nunca ele mesmo.
A idealização do feminino faz parte da vida simbólica do Puer. Ao perceber que a mulher por ele idealizada não é aquilo que ele imaginou, mas sim um ser humano complexo, o Puer simplesmente se torna indiferente a ela. A vontade de ser protegido e amado o faz procurar sempre pelo ideal que herdara do complexo materno ainda latente em seu inconsciente.
Dorian Gray, por exemplo, ao ver Sibyl Vane encenando no teatro, entra num estado assustador de fascínio e, novamente, de entusiasmo. A paixão do Puer há sempre de ser egoísta, uma vez que o outro é esvaziado e preenchido pela fantasia. Dorian se apaixona pelo talento da garota, mesmo reconhecendo sua beleza e outras qualidades. Quando esta revela que pretende largar o teatro para viver com ele, o jovem retira dos ombros da moça a seda vermelha escarlate da perfeição que havia projetado e se torna indiferente à sua, até então, amada, o que resulta na morte da garota.
A neurose para a psicologia analítica é encarada também como um bom sinal, uma vez que aponta, a partir do sintoma, para algo que precisa e quer crescer. Porém, caso este crescimento seja negado, ele acontece inconscientemente e devora o indivíduo. Esse processo é o que Von-Franz(1982) chama de individuação negativa.
O Puer aeternus é justamente este que nega seu destino. Mesmo que saiba o que fazer, nega abandonar a juventude, diferenciar-se da mãe e tornar-se livre para fazer suas próprias escolhas diante do mundo. Assim, ele prova do seu próprio veneno, numa espécie de autofagia devoradora que o levará, consequentemente, à morte.
Dorian Gray e seu (não) desenvolvimento
Agora, podemos finalmente ir para o clímax desta newsletter: a análise da tão caricata personalidade do Menino Dorian. Logo no início da narrativa, Basílio e seu amigo Lorde Henrry entram em uma discussão acerca da beleza e do intelecto, características estas impossíveis de serem carregadas pelo mesmo homem, como afirmado na página 22: “o Gênio dura muito mais que a beleza.”
A perpetuidade da sabedoria em contraste com a degeneração da beleza é um dos problemas que atravessam a narrativa e o conflito do próprio Dorian, que luta pela jovialidade e vida eterna. Algo muito curioso é que ao chegar na segunda metade da vida, Dorian, ainda que mantendo a ideia idealizada de um mundo que construíra para si e a busca pela realização de desejos momentâneos, passa a se ocupar com hobbies e estudos.
Assim, torna-se um colecionador de artefatos antigos, obras de artes, chegando a se interessar pela química, pelo misticismo, pela religião, por pedras preciosas e perfumes. Essa “troca” de ideais — no caso do repentino interesse de Dorian por temas intelectuais — tão subitamente se dá por conta do que Jung(2014) chamou de enantiodromia. A enantiodromia — nesse caso, vinculada à necessidade de individuação não atendida pela personagem — é quando existe a repressão de aspectos não trabalhados pelo sujeito para o inconsciente e uma espécie de supercompensação. Nesse processo, “quanto mais o nível da carga energética se eleva, tanto mais a atitude repressiva assume um caráter fanático e, como conseguinte, tanto mais se aproxima da conversão desse oposto” (Jung, 2014, p.177).
Ao focar tão desesperadamente em questões intelectuais na tentativa de se esquecer do quadro que envelhece em seu sótão, existe igualmente o crescimento desse conteúdo reprimido que, cedo ou tarde, virá a devorá-lo por inteiro.
Percebam que o destino de Dorian sempre foi ser devorado por si mesmo, pela sua psique, seja por conta da sua personalidade pouco desenvolvida, seja pela negação do seu destino e o não rompimento com o complexo materno.
Durante suas crises morais, Dorian prometia se tornar um homem bom. Mas essa intenção unilateral nunca foi verdadeira o suficiente para se tornar possível, uma vez que não existe nesse mundo algo que seja totalmente bom ou totalmente mau. O que existe é a união dos opostos; a boa relação daquilo que domina a consciência com o que foi negado e enxotado para o inconsciente.
Mas a união nunca aconteceu para Dorian.
Finalmente, a autodestruição
Perseguido pelos pecados que acometem sua consciência, Dorian se viu, durante toda sua vida, sob a influência mágica e sobrenatural de criaturas demoníacas: seus complexos não trabalhados. Mantendo-se jovem e fugindo das consequências de suas ações, Dorian foi se tornando cada vez mais neurótico e unilateral.
Quando finalmente volta ao sótão com o plano de destruir seu retrato — o culpado por toda a desgraça em sua vida —, para que assim possa se tornar livre, ocorre aquela cena tão conhecida: ao tentar matar o outro, mata a si mesmo; um ponto final para todo o sofrimento psíquico outrora manifesto. Morte precoce, o preço que se paga pela tal juventude eterna.
Obrigada a todos que leram até aqui e até a próxima ;)